Neste Desassossego Literário, o copywriter Luís Rego faz uma recensão crítica ao livro Maria Bettencourt, Diários de uma mulher singular, de Henrique Levy.

Luís Rego afirma que gosta «do anacronismo, pois não existe a preocupação de emprestar uma sequência lógica e correcta entre as entradas no diário. E finalmente gosto da simplicidade dos diálogos e da forma em que entram na narrativa, sem pedir licença, faz favor, rompendo com as normas de etiqueta literária até aqui estabelecidas. Quem terá criado tais regras?

 

Tenho um fraquinho por livros que conseguimos ler de uma só vez, quase com uma só respiração, de um só trago. Falo muito na Pomba, mas O EstrangeiroO Velho e o Mara MetamorfoseA Alice no País das MaravilhasO Bracinho, entre muitos outros, enquadram-se numa categoria muito particular: o pequeno romance. E estes livros funcionam muito bem porque as emoções resultantes da leitura ficam mais compactas e acabam por ter mais impacto e profundidade. Tentei ler de uma só vez O Rapaz do Tambor de Lata, ou mesmo A Montanha Mágica e falhei redondamente, ou porque caí para o lado, ou porque a córnea se irritou comigo ou com o livro, não sei.
Foi um pouco neste espírito velocista que me agarrei ao livro Maria Bettencourt, Diários de uma mulher singular. Quando senti o livro pela primeira vez percebi de imediato que o conseguiria ler de uma só vez. Depois foi só esperar pelo momento certo.

Dia 1 de janeiro de 2020

Comecei e acabei hoje de ler um livro muito interessante do Henrique Levy sobre a intricada vida de uma mulher, inserida numa ideia de família, com algum peso social na ilha de São Miguel, Açores. Um dos pontos que mais me agarrou à leitura foi precisamente o facto de se passar nos Açores. Não posso deixar de me admirar com a coragem do Henrique, que não sendo de cá, transportou-me para uns Açores que acredito existirem. Em muitos pontos e linhas os Açores que conheço e reconheço. E isto vai desde a paisagem, à geografia concisa, mas também à cultura e à linguística. E eu gosto muito de ler livros que me conseguem fazer sentir Açores, e que este arquipélago não é um mero pano de fundo para uma história qualquer. Depois, também creio ser de uma coragem extrema um homem escrever na pele de uma mulher. Não é fácil, e é francamente assustador. Os homens são considerados péssimos escritores de personagens femininos. O Henrique, que disse gostar de águas agitadas, parece ter-se atirado de alma e coração a esta tarefa.

29 de janeiro de 1970 – Página 84
Um toque de surrealismo. Maria Bettencourt decide vender, e vende, um dos T’s do seu nome ao agora TTavares.

13 de abril de 1970 – Página 85
A Maria Betencourt tenta readquirir o segundo T. E consegue, embora tenha de pagar o dobro do valor que recebeu pela venda inicial.

11 de maio de 1972 – Página 123
Há uma frase, creio que do Daniel de Sá, “sair da ilha é a pior forma de ficar nela”, que me parece falar sobre ausências. Eis que Firmino diz, às tantas, “Só vale a pena morar para sempre em alguém, se para isso não for necessário ausentarmo-nos de nós.” Tem um pouco de filosofia e poesia e funcionou muito bem naquele momento do livro.

17 de maio de 1972 – Página 129
“Nunca percebi a razão para a mamã me ter ensinado, desde pequena, a agradecer a Deus por mais um dia! Pois, afinal, para nós, é sempre menos um dia”. A religião a desembocar no distante existencialismo, uma espécie de quente e frio para a sobremesa.

“Ó bezuga! Atiram, como piropo, os mestres, quando passo numa qualquer obra. Para, reles, acrescentarem, após constatarem a espessura das minha lentes. Tira os óculos e vamos brincar à cabra cega!”
Também gosto muito do sentido de humor e gostei muito deste momento, que hoje seria considerado sexista. O que vale é que estávamos em 1972.

30 de junho de 1976 – Página 139
Após votarem, pela primeira vez na vida, e de uma forma quase arbitrária, Maria reflete sobre o facto. “Mas que raio de legalidade terá o resultado destas eleições se todos tiverem votado como eu e a Tázinha? Uma em fúria, outra com problemas de classe. A partir desse dia, comecei a desconfiar da democracia!”. Creio que a dúvida permanece até hoje, ficando também a certeza de que se a Maria tivesse um partido qualquer podia muito bem ser deputada. O jeito que não tinha dado? É que a profissão de bombista está cada vez mais difícil.

7 de janeiro de 2020.

Hoje vejo-me a escrever sobre o livro do Henrique por todas as razões acima mencionadas, e porque gosto muito do tom informal e descontraído. Gosto também do anacronismo, pois não existe a preocupação de emprestar uma sequência lógica e correcta entre as entradas no diário. E finalmente gosto da simplicidade dos diálogos e da forma em que entram na narrativa, sem pedir licença, faz favor, rompendo com as normas de etiqueta literária até aqui estabelecidas. Quem terá criado tais regras?
Fica evidente que é uma pergunta que não preocupa minimamente o Henrique. E se puder dar uma opinião, já que não fiz mais nada até aqui, creio que faz muito bem.

 

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