Vila da Santa, a cidade do passado sem futuro
Se é verdade que Cidade sem Nome, de Ana Ferraz da Rosa, saído em Setembro de 2018, passou despercebido no nosso já reduzido mercado editorial, mais verdade é que deveria merecer um pouco da nossa (reduzida) atenção. É um romance curto, quiçá mais próximo do tom de uma novela local. No entanto, os encontros e desmandos da narrativa, assim como inesperados avanços e recuos, fazem-nos crer que estamos perante um romance estruturado e consequente.
É a primeira voz íntima do romance, Maria da Encarnação (que nome tão nosso), quem escreve, ou diz, logo a iniciar:
Tínhamos sempre tanto para dizer, quando já estava tudo dito.
Luzia, a mais velha de uma série de irmãos, preterida pelo homem com quem desejava casar em benefício de Encarnação, e que mais tarde virá a ser, para seu próprio bem, Mrs. Marita Bacassi, um nome que faria esquecer a pobreza de outrora, porque “as pessoas pobres não têm perfume”, mas um “cheiro próprio (…), uma mistura de vento e sabão azul, como a que ficava na minha roupa depois de correr, descalça, até ao fundo da canada, para apanhar tomates de capucho e comê-los na hora, com as sementes a escorrerem-me pelos cantos da boca.” Não querendo ser repetitivo: mas que cena tão nossa!
Para comprar as simpatias das gentes simples, o Senhor Bacassi, o prometido, oferece a todos a civilização em estado olfactivo: um perfume. A condição da pobre rapariga oriunda de uma família numerosa, transforma-se na donzela de um baile que perdurará pelos tempos. O perfume, coisa nunca antes vista naquelas paragens, nunca antes cheirada, nunca antes em contacto com o seu frágil corpo de menina, mas que, pasme-se, transpirava “a urina de gato, cor e tudo”, o que não coíbe o leitor de um profundo momento galhofeiro.
Porém as cenas iniciais deslizam rapidamente para o centro de Vila da Santa, que não é mais do que a indisfarçável Praia da Vitória, onde um dia entraria toda “uma armada estrangeira” de militares, camiões, pilhas de madeira , chapas de metal, caixotes a rodos, que passariam de ora em diante a coabitar com a pacatez da localidade e a mudá-la para sempre. Pelo olhar clínico de uma autora que conhece bem a história dos Americanos na ilha Terceira, o microcosmos secular de um pacato lugar dá origem a uma vertigem de casas, jardins, arruamentos, espaços comerciais e, vai daí, toda a parafernália de tendências que brotam da modernidade. A essa nova cidade, faiscante, fervilhante, moderna, chama a autora/narradora cidade sem nome, descaracterizada, sem passado, lugar onde tudo se torna “inconsequente”, até o lugar onde se enterram os mortos.
A certa altura bem que a autora nos quer confundir. Após um terremoto, o militar americano Jim Hanks e o seu pelotão irrompem pela cidade com os seus jipes, passando pela Avenida do Mar, depois atravessam por uma rua dos Mercadores e estacam na Praça do Município para serem recebidos pelo edil local, sendo que nunca poderia ser Ponta Delgada, nem muito menos o nosso alcaide. Toda a cena é uma finta à monotonia das ruas de Vila da Santa, baralhando os referentes para pasmo do leitor, que comentará ao ler: “Ah!, mas isso não se passa em Ponta Delgada?”.
Enfim, a cidade e a ilha desenvolvem-se, demográfica e economicamente, avançando por onde outrora verdejavam pastagens e matas, erguendo-se casas com jardins elegantes, cheias pelas mulheres dos militares, com as suas modas, os seus negócios inovadores, os hábitos de Além-Mar, as abundâncias do tio Sam, que tudo arrebatam à sua passagem. O avesso tinha virado a ilha. Ainda hoje o avesso parece virado da ilha.
A literatura de uma ilha pode atravessar oceanos e passar a ser intemporal que temos mais é que elogiar e pedir por mais. Este Cidade Sem Nome é um repositório de memórias sedimentadas, como todas as histórias, as reais, mas também as ficcionadas. É um livro que quer contar a história de uma cidade que surge do nada, uma cidade em diálogo entre os tempos modernos, que então chegavam vorazmente, e os modos tradicionais de uma população que vivia nas trevas dos tempos, um tempo em que as mulheres ainda eram serviçais aos seus maridos, os filhos respeitavam os pais, os pais mandavam na vida, e a vida transbordava com o destino.
Cidade sem Nome é um romance da Editora Letras Lavadas.
Luís Soares Almeida
Diretor Editorial das Letras Lavadas